O Norte é feminino.
O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher
portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina, o Norte dá
nas vistas sem se dar por isso.
As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis,
daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se
sozinhos.
Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam de mãos nas ancas. Olham de
frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão
confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas,
graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas
pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as
verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas, da maneira como coram
quando se lhes fala e da maneira como podem puxar de um estalo ou de uma
panela, quando se lhes falta ao respeito. Gosto das pequeninas, com o cabelo
puxado atrás das orelhas, e das velhas, de carrapito perfeito, que têm os
olhos endurecidos de quem passou a vida a cuidar dos outros. Gosto dos
brincos, dos sapatos, das saias. Gosto das burguesas, vestidas à maneira, de
braço enlaçado nos homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como
conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas.
São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem. As mulheres do Norte
deveriam mandar neste país. Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em
Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte. Numa procissão,
numa barraca de feira, numa taberna, são elas que decidem silenciosamente.
Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial.
Só descomposturas, e mimos, e carinhos.
O Norte é a nossa verdade.
Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulho no
Norte, porque me parecia que o orgulho era aleatório. Gostavam do Norte só
porque eram do Norte. Assim também eu. Ansiava por encontrar um nortenho que
preferisse Coimbra ou o Algarve, da maneira que eu, lisboeta, prefiro o
Norte. Afinal, Portugal é um caso muito sério e compete a cada português
escolher, de cabeça fria e coração quente, os seus pedaços e pormenores.
Depois percebi.
Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já nascem escolhidos. Não
escolhem a terra onde nascem, seja Ponte de Lima ou Amarante, e apesar de as
defenderem acerrimamente, põem acima dessas terras a terra maior que é o "O
Norte".
Defendem o "Norte" em Portugal como os Portugueses haviam de defender
Portugal no mundo. Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua
pertença particular - o nome da sua terrinha - para poder pertencer a uma
terra maior, é comovente.
No Porto, dizem que as pessoas de Viana são melhores do que as do Porto. Em
Viana, dizem que as festas de Viana não são tão autênticas como as de Ponte
de Lima. Em Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda é mais bonita.
O Norte não tem nome próprio. Se o tem não o diz. Quem sabe se é mais Minho
ou Trás-os- Montes, se é litoral ou interior, português ou galego? Parece
vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas, para
as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes, sentir aquelas mãos em cima
de nós, com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para
adivinhar.
O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra, como nome de nós
todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a maneira que têm e
dizer "Portugal" e "Portugueses". No Norte dizem-no a toda a hora, com a
maior das naturalidades. Sem complexos e sem patrioteirismos. Como se fosse
só um nome. Como "Norte". Como se fosse assim que chamassem uns pelos
outros. Porque é que não é assim que nos chamamos todos?».
Miguel Esteves Cardoso (abridged)
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