Água mole em pedra dura...

2007-03-04

PIN

Interesse nacional ou o saque de Portugal
Por Miguel Sousa Tavares

"Os portugueses não gostam de Portugal. Os portugueses gostam deles, não
gostam do país que têm. Destroem-no de tal maneira que não podem gostar de
Portugal. E eu não gosto das pessoas que não gostam do país que têm"
António Barreto, 'Público', 25.02.07

Fiz as contas e cheguei à triste conclusão de que há pelo menos 25 anos
que me dedico a escrever textos tentando denunciar os sucessivos atentados
à paisagem e ao património natural deste país. E daqui extraio duas outras
conclusões: uma, a de que estou a envelhecer mais depressa do que
esperava; e outra, ainda mais deprimente, a de que esta é uma causa que só
tem passado - não tem presente e, menos ainda futuro. Se há causa perdida
em Portugal é a que ainda tenta pôr um travão e um mínimo de bom-senso (já
nem falo de amor ao país, como António Barreto...) a esta continuada
devastação da terra portuguesa. Sei que já não adianta dizer nada, mas vou
insistir, mais uma vez.

Toda essa bela gente que tem a faculdade de decidir do que é público
costuma encher a boca com um palavrão politicamente correcto e bem-soante:
crescimento sustentado. Isso é o que eles anunciam - nos programas de
Governo, nos preâmbulos das leis e nos discursos de circunstância. O que
fazem é exacta e conscientemente o contrário.

Crescimento sustentado, como o seu nome indica, significa, no caso, que
não pode haver construção ou actividades permitidas que não tenham
capacidade de sustentação local nos recursos naturais ou fornecidos pelo
homem. E isso faz-se com estudos e, a seguir, com planos. Nós temos
planos, de facto: muitos, às vezes demasiados, quase sempre em revisão. Só
que os nossos planos são intencionalmente pouco claros, são elaborados com
intenções ocultas e com batota (é a própria entidade que quer promover os
empreendimentos que faz o estudo de impacte ambiental, por exemplo) e,
sobretudo, uma vez feitos, logo aparecem leis a abrir excepções. Um mau
Plano de Ordenamento Territorial é melhor do que plano algum; mas um plano
que consente excepções às regras, a definir casuisticamente, é um queijo
suíço cujo resultado final é vedar aos pequenos e pobres e consentir aos
grandes e ricos, com influências políticas para vencer ou dinheiro para
corromper, se necessário.

Com o Governo presidido pelo eng.º José Sócrates (que, nunca é demais
recordá-lo, já foi ministro do Ambiente, embora agora assobie para o ar,
fingindo não ver o que se passa), foi inventada a 'solução final' para
acabar de vez com qualquer resquício de planeamento territorial e adoptar
livremente o fartar vilanagem, que tantas fortunas instantâneas, tantos
comendadores de mérito e tantos generosos contribuintes dos partidos tem
dado ao país. São os chamados 'Projectos PIN' (PIN significa ironicamente
Projecto de Interesse Nacional). E o que é um 'Projecto PIN', em matéria
imobiliária? É aquele através do qual alguém que pretende construir em
zona vedada à construção apresenta um projecto megalómano, invariavelmente
definido como 'amigo do ambiente' e cheio de 'zonas verdes' que são campos
de golfe, prometendo ainda criar uns milhares de postos de trabalho (sem
distinguir, obviamente, aqueles que se referem à construção e os que
sobrarão no final, e sem dizer igualmente que os ditos postos de trabalho
não serão preenchidos por portugueses, que preferem a segurança do
subsídio de desemprego, mas sim por brasileiros, angolanos, romenos,
marroquinos ou ucranianos). Munido deste 'ambicioso' plano e destas
excelentes intenções, o 'empresário' bate à porta do dr. Basílio Horta,
presidente da API, que o recebe entusiasticamente, classifica o seu
projecto de PIN e o remete para o dr. Manuel Pinho, ministro da Economia,
que logo aprova a classificação de PIN, sem sequer se incomodar a ouvir a
opinião do eng.º Nunes Correia - um fulano que dá pela alcunha de ministro
do Ambiente e que anda muito ocupado a tentar evitar que o mar chegue a um
restaurante nas dunas da Costa de Caparica, enquanto que, e graças à sua
colaborante distracção, milhares de metros de construção se preparam para
chegar às dunas de muitas outras praias.

Dos cerca de vinte projectos PIN já aprovados assim, mais de metade
referem-se a empreendimentos turísticos e todos eles, sem excepção, vão
ser instalados em zonas onde, de acordo com os tais planos, a construção
está vedada: Reserva Agrícola, Reserva Ecológica, Rede Natura 2000.
Imaginem só o negócio fabuloso: terrenos que são comprados por tuta e
meia, porque não podem ser urbanizados, e que, depois, graças à milagrosa
chancela PIN, são urbanizados e comercializados a preços justificados por
«slogans» do tipo "venha viver numa Reserva Natural!". Um só negócio
destes, e um tipo não precisa de fazer mais nada a vida toda - e ainda
acaba condecorado por servir o 'interesse nacional!' Não sei se já
repararam, mas desde que os PIN estão em vigor, nunca mais se ouviu um
protesto nem um lamento dos autarcas do Algarve, do litoral alentejano ou
das margens de Alqueva, e dos empreendedores imobiliários turísticos.

Resta - além da destruição irreversível da paisagem natural, que é de
todos ou devia ser, a tal questão chata do 'crescimento sustentável'.
Ninguém sabe se haverá água, energia, estradas, estacionamento, capacidade
nas praias, poluição nos solos, capacidade de resposta de serviços
públicos e camarários, depois de tudo o que vai sendo aprovado alegremente
estar construído. Peguemos nos golfes, por exemplo, que sempre acompanham
obrigatoriamente qualquer projecto turístico aprovado. Mais uma vez
esclareço que não tenho nada contra os golfes - pelo contrário, acho um
desporto saudável, útil e interessante e reconheço sem esforço que pode
ser uma mais-valia para o país. Simplesmente, um campo de golfe só é verde
à vista. Para o manter assim verde, é utilizada uma quantidade imensa de
químicos e pesticidas - o que faz com que, em qualquer país civilizado,
não sejam autorizados em zona de reserva agrícola e, menos ainda, de
reserva ecológica, onde iriam contaminar os veios de água. Mas um campo de
golfe de 18 buracos é também um grande gastador de água: gasta diariamente
o mesmo que uma população de 8.000 pessoas. Ora, só no Algarve, há trinta
campos em funcionamento e mais quarenta já aprovados, o que implica um
consumo equivalente a mais de meio milhão de pessoas. Como se sabe, porém,
o Algarve vive ciclicamente com problemas de abastecimento de água,
levando os autarcas a reclamar a construção sucessiva de mais barragens -
o que também não é inócuo e tem consequências, por exemplo, ao nível do
desaparecimento da areia das praias (a Natureza é chata, não é?). Para
obviar a isto e poder continuar a aprovar mais golfes em todo o lado,
juraram, há anos, que todos os campos seriam regados apenas com águas
residuais, reutilizadas. Juraram, mas não cumpriram, porque sai mais
barato e é mais prático não cumprir. Apenas um dos trinta golfes do
Algarve, o dos Salgados, é regado assim: os outros vão à rede pública e
esperam pelas barragens.

Apenas uma conclusão final: o que este Governo está a fazer com a sua
política de turismo e ordenamento do território não é apenas a aposta
definitiva num turismo de massas, em prejuízo de um turismo de qualidade -
em cuja promoção gastamos anualmente rios de dinheiros públicos. Está
também a criar problemas sérios para o futuro, muito para lá do futuro que
tem que ver com as próximas eleições. Não haverá para aí ninguém que
também queira organizar uma conferência sobre esta verdade inconveniente?

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